Nos dias 7 e 8 de junho de 2024, o Sinpro Campinas e Região realizou o Encontro Nacional de Professores e Estudantes das Universidades Católicas. O evento abordou o papel da universidade frente aos desafios de seu tempo, a crise da democracia e as relações de conflito que ela implica no ambiente acadêmico.
Participaram do Encontro professores e representantes de várias entidades ligadas ao campo da Educação, incluindo representações estrangeiras, como a do Sindicato dos Professores da Rede Privada da Argentina. Também o Vaticano enviou sua saudação por meio do Cardeal José Tolentino de Mendonça.
Segundo Conceição Fornasari, presidente do Sinpro, a ideia do evento nasceu de constante conversas mantidas com os professores da PUC-Campinas durante a campanha salarial, quando surgiram outras demandas e vieram à tona denúncias acerca de demissões arbitrárias e descumprimento de cláusulas da convenção coletiva da categoria.
Do Encontro resultou uma Carta Aberta, assinada coletivamente após os debates finais. A carta traça um plano de ação para os próximos anos e poderá ser ampliada a partir da próxima edição do evento, prevista para 2025.
A seguir, apresentamos o texto na integra.
Carta Aberta do Encontro Nacional de Professores e Estudantes das Universidades Católicas
Nos dias 7 e 8 de junho de 2024, o Sindicato dos Professores de Campinas e Região (Sinpro Campinas), da Associação de Professores da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Apropucc) e do Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho (CES) promoveram e organizaram o Encontro Nacional de Professores e Estudantes das Pontifícias Universidades Católicas, Universidades Católicas e Colégios de Aplicação a elas vinculados.
O evento foi realizado de forma presencial e remota, a partir de Campinas (SP), e teve o propósito de discutir os rumos tomados por essas instituições diante dos impactos do modelo neoliberal e dos interesses do mercado, inclusive no que se refere à formação de educadores e das humanidades, às condições de trabalho e aos modelos político pedagógicos adotados por elas nos últimos anos. Os rumos tomados por essas tradicionais instituições católicas foram o ponto de convergência de professores e estudantes de vários estados brasileiros e a motivação para a realização do Encontro.
O Encontro contou com a presença das seguintes entidades sindicais e dos movimentos sociais: CONTEE, FEPESP, UNE, UEE, SINPROS: Campinas, Santos, Goiás, Minas, São Paulo; Associações de professores das Pontifícias Universidades Catolicas: de Campinas (Apropucc), Minas (Adpuc), Goiás (Apuc) e São Paulo (Apropuc).
No centro dos debates esteve a identificação do estabelecimento, na atualidade, em tais instituições de ensino católicas, de um processo de tratamento dos estudantes – cidadãos titulares de direitos insuscetíveis de precificação – como clientes capazes de gerar dividendos, enquanto os professores e trabalhadores administrativos, por sua vez, tornam-se vítimas de um processo acelerado de precarização do trabalho e desmonte da carreira docente.
Diante desse cenário, os participantes do destacado Encontro lançam seu brado social em prol de novos rumos para a educação superior católica, entendendo que essas preocupações estão em conformidade com a visão do Papa Francisco, expressa na entrevista publicada por National Catholic Reporter, em 19 de janeiro de 2024, segundo a qual cabe às universidades católicas, em todo mundo, contraporem-se à nefasta política da conversão da educação em negócio, bem como posicionarem-se firmemente, “ajudando os estudantes a descobrir suas vocações para contribuir com a paz e o aprimoramento da sociedade”. Em outras palavras, formar estudantes críticos, conscientes de seu papel social e político em prol de uma sociedade justa e fraterna.
A redemocratização no Brasil se deu em harmonia com a confecção de amplo tecido social constitucional, culminando com a Constituição cidadã de 1988. Paradoxalmente, nas décadas seguintes, as IES católicas começam a perder sua robustez e a qualidade que as diferenciavam de tantas IES privadas, com fins meramente lucrativos.
Lamentavelmente, as IES católicas, bastiões da resistência civil ao longo da ditadura militar, tornaram-se lugar comum, que não mais se distingue pela confiança, segurança jurídica e relações democráticas. Ao reverso, predominam a autocracia e a tecnocracia, com regras baixadas unilateralmente, à revelia de professores, administrativos e estudantes, como que a renegar o passado recente de construção coletiva, colaborativa e efetivamente participativa. Sob a alegação de resolver os problemas de endividamento, de déficit e de diminuição do número de estudantes nelas matriculados, ocorreram e ainda ocorrem várias intervenções na autonomia universitária.
Tais intervenções tiveram como objetivo a reestruturação e reformas internas, inclusive de direitos trabalhistas, além de ataque à participação democrática nos órgãos de decisão, com esvaziamento do poder deliberativo dos órgãos acadêmico-administrativos. As intervenções contaram com apoios internos, mas não sem encontrar grande resistência.
Dentre as modificações, destacam-se: reformas nos cursos do que têm decorrido o seu empobrecimento em conteúdos e em carga horária; crescimento de cursos à distância; medidas de mudanças contratuais dos novos contratados (praticamente hora-aula e contratos temporários); rebaixamento do trabalho docente, promovendo-se desigualdades na carreira docente, aliada à imposição de demandas de trabalho que extrapolam a razoabilidade, pondo em risco a qualidade da pesquisa e do ensino ministrado, como, também, a própria saúde desses trabalhadores.
Destacam-se ainda a ausência de políticas de apoio aos cursos de humanidades e às licenciaturas, com a decorrente ameaça à suspensão ou ao efetivo encerramento desses cursos, confirmando a desfiguração do papel social dessas instituições na formação de professores.
Em considerável parcela dessas IES Católicas, senão em todas, constata-se a adoção de uma política de precarização das estruturas da carreira docente, retrocesso que lamentavelmente contraria sua história pregressa. A tal precarização do trabalho docente soma-se a ingerência na autonomia universitária, a descaracterização dos órgãos colegiados democráticos e participativos, a desconstrução de políticas e instrumentos institucionais, entre eles o Plano de Desenvolvimento Institucional, políticas acadêmicas, estatutos, regimentos e projetos políticos pedagógicos (PPP’s).
Às mesas de negociações coletivas, os representantes das IES católicas têm se associado aos grupos econômicos que fazem da educação mercadoria, com o nada republicano propósito de a cada ano rebaixar as já precárias condições de trabalho, que passam longe do conceito de trabalho decente, esposado e enfaticamente defendido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Patenteiam-se dois comportamentos distintos, no seio dessas instituições: o dos grupos que se unem para exigir regulamentação e também critérios de aferição de qualidade, buscando, pela luta política unitária, reverter a situação e sua manutenção como instituições diferenciadas e com padrão de qualidade; e, por outro lado, o dos que atuam à mesa de negociação fazendo coro com os gerentes do capital aberto e procuram usar de todas as artimanhas de precarização e reformas estruturantes para competir com as instituições mercadológicas. Lamentavelmente, nos últimos anos, estes últimos têm se fortalecido nos espaços de decisão administrativa em tais IES.
É de todo lamentável que as IES católicas, verdadeiros bastiões da resistência à ditadura inaugurada com o Golpe de 1964, que, no passado, construíram e implementaram projetos político-pedagógicos coletivos e participativos, com carreira docente digna, valorização de trabalhadores e trabalhadoras e voltadas para a formação de jovens e adultos como verdadeiros cidadãos, tenham abandonado a democracia interna e suas relações com os movimentos sociais, precarizando relações de trabalho, deixando de dialogar com as entidades sindicais.
Ante a essas profundas mudanças regressivas, os participantes do Encontro, além de apontar com clareza esses descaminhos, defendem e lutam pela reconstrução de relações democráticas, de confiança e de trabalho dignos, para que se restabeleça a democracia nas IES católicas. Que elas sejam espaços de saber crítico, de ciência e reflexão, indo ao encontro com as aspirações da juventude atuante, buscando fazer com que seus trabalhadores e trabalhadoras tenham motivação para exercer suas funções com dignidade, certos de que são molas mestras nessa retomada.
Para tanto, há imperiosa necessidade de que pautem sua conduta por:
I. em garantia aos princípios constitucionais, efetiva valorização de seus estudantes, docentes e funcionários, com condições dignas para estudar e trabalhar em ambiente que cultue o diálogo e as relações democráticas, que propicie a liberdade de aprender e ensinar e que assegure a pluralidade de ideias e o livre debate sobre diferentes concepções pedagógicas;
II. respeito às entidades de organização dos estudantes e trabalhadores e de seus acordos coletivos;
III comprometimento com as demandas sociais, fortalecendo a pesquisa e extensão e com disponibilização de vagas, em seus cursos, para as pessoas oriundas das camadas populares, com vestibulares sociais, vagas PROUNI, Fies Social e bolsas institucionais próprias;
IV. valorização dos cursos de humanidades, das licenciaturas, da Pedagogia e demais áreas de saber e a formação docente, hoje tão desprestigiadas e relegadas a plano inferior;
V. realização efetiva de serviços e trabalhos extensionistas em apoio às comunidades periféricas, com disponibilização dos conhecimentos produzidos para o povo;
VI. implementação de políticas avaliativas de qualidade da educação, visando à preservação das IEs livres e autônomas, pondo freio definitivo à ação predatória de conglomerados.
Para nós docentes, estudantes, movimentos populares e sociais do Brasil, é urgente que as Pontifícias Universidades Católicas, que as Universidades e Colégios de Aplicação Católicos assumam, realmente, esse conjunto de compromissos. Enfim, que coloquem em prática o que orienta o Papa Francisco, destacado no Pacto Global para Educação de 2019: …“reavivar o compromisso em prol e com as novas gerações, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão, convidando todos a unir esforços numa ampla aliança educativa para formar pessoas maduras, capazes de superar fragmentações e contrastes e reconstruir o tecido das relações em ordem a uma humanidade mais fraterna – uma educação humanista atualizada”.
Buscamos um futuro democrático para as IES católicas:
1. que elas reforcem a educação crítica, humanista e o papel social de seus cursos e instituições;
2. que fortaleçam a democracia interna e a autonomia acadêmica das suas mantidas;
3. que sustentem o ensino, pesquisa, extensão e conexão, articulados e com qualidade;
4. que assumam um papel político diferenciado que dê condições de elaboração de projetos de fortalecimento dos cursos socialmente referenciados.
Destacamos que as contribuições ao debate dadas pelo Encontro Nacional de Professores e Estudantes das Pontifícias Universidades Católicas, Universidades Católicas e Colégios de Aplicação, não se esgotam nesta primeira edição. Temos plena consciência das dificuldades impostas pela realidade objetiva da Educação brasileira e do quão complexo é enfrentar o avanço do pensamento mercantilista sobre as instituições do Ensino Superior. Mais: sabemos quanta energia nos custará reverter este processo.
Confiamos que há caminhos possíveis – e alguns deles, apontados no Encontro, estão citados neste documento. Cabe a nós, docentes e estudantes interessadas/os em uma Educação realmente voltada à cidadania, construirmos as condições para uma mobilização nacional que esteja à altura deste desafio.