
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) anunciou neste sábado (13) que conseguiu esclarecer um dos maiores mistérios da música brasileira: a morte do pianista Francisco Tenório Cerqueira Júnior, o Tenório Jr., desaparecido em 18 de março de 1976, em Buenos Aires.
Segundo informações da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), o músico foi morto a tiros e enterrado sem identificação em uma vala comum na periferia da capital argentina. A confirmação foi obtida por meio de datiloscopia, comparando impressões digitais de Tenório com registros de cadáveres encontrados durante a ditadura.
Do Hotel Normandie ao destino trágico
Tenório acompanhava Vinicius de Moraes e Toquinho em uma turnê pela América do Sul quando saiu, de madrugada, do Hotel Normandie, no centro de Buenos Aires, para comprar cigarros e não voltou mais. Dois dias depois, seu corpo foi abandonado em um terreno baldio em Tigre, na província de Buenos Aires.
A Justiça argentina determinou a reabertura de processos arquivados entre 1975 e 1983, referentes a cadáveres nunca identificados, permitindo agora a conclusão de que um deles era o pianista brasileiro. Ainda não está claro se será possível exumar o corpo no Cemitério de Benavídez para a realização de exames de DNA.
A engrenagem da repressão
A CEMDP destacou que o caso está relacionado ao funcionamento da Operação Condor, aliança repressiva entre as ditaduras da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia nos anos 1970. O objetivo era perseguir, sequestrar, torturar e eliminar opositores políticos, independentemente das fronteiras.
Embora Tenório Jr. não fosse militante, sua morte expõe como o contexto de repressão atingiu até mesmo artistas estrangeiros, confundidos com “subversivos” por sua aparência ou por meras circunstâncias.
Um ciclo de dor e memória
A comissão informou que já comunicou oficialmente a família do pianista, que na época de seu desaparecimento vivia no Rio de Janeiro. A esposa, Elisa Cerqueira, estava grávida do quinto filho do casal.
“Seguimos à disposição para oferecer todo o apoio necessário aos familiares neste processo, assim como para colaborar com esforços e diligências que visem à localização dos remanescentes humanos do artista brasileiro”, disse a CEMDP em nota.
O músico interrompido
Nascido em 1941, no Rio de Janeiro, Tenório Jr. era considerado um dos pianistas mais talentosos de sua geração, elogiado por nomes como Nana Caymmi, Edu Lobo e Ruy Castro, que o definia como “o melhor pianista de seu tempo”. Seu LP “Embalo” (1964) é hoje cultuado como obra-prima do sambajazz e da bossa instrumental.
Na noite de 17 de março de 1976, no Teatro Gran Rex, em Buenos Aires, foi aplaudido de pé como “a mais autêntica expressão da música contemporânea brasileira”. Poucas horas depois, seu nome entraria para a lista dos desaparecidos da repressão.
Uma perda para além da música
A identificação de seus restos mortais não encerra apenas uma busca familiar, mas também uma ferida histórica. Tenório Jr. foi vítima da violência política que marcou a América Latina dos anos 1970 e, ao mesmo tempo, da omissão diplomática brasileira, que pouco fez para esclarecer o caso na época.
Como resume a CEMDP, a descoberta “não é apenas um ato humanitário, mas uma prova que pode levar à responsabilização de agentes da repressão e devolver à história da música brasileira uma de suas vozes mais promissoras”.
Leia a nota da família na íntegra:
“Recebemos a notícia da identificação do corpo de nosso pai com surpresa, claro, e um misto de alívio e tristeza. Alívio porque, finalmente, podemos saber com mais segurança o que aconteceu com ele naquele triste março de 1976. De alguma maneira, estaremos mais próximos. Tristeza pela confirmação de que Tenório foi vítima da violência e enterrado como um desconhecido, longe da família, dos amigos, dos parceiros de música.
Um pianista de apenas 35 anos, respeitado em seu meio, pai de cinco filhos, que foram privados de sua convivência, obrigando nossa mãe a criar sozinha cinco crianças, de 8, 7, 5 e 4 anos, além de uma que não chegou a conhecer o pai. Nasceu um mês depois do desaparecimento. Tenório não conheceu o filho caçula nem os oito netos.
Durante muito tempo, mesmo sabendo que era improvável, alimentamos a esperança de revê-lo. De que um dia a porta da casa se abrisse e ele entraria. O “Papú”, como o chamávamos. Com o tempo, compreendemos que não teríamos mais respostas. Que teríamos que conviver sem saber o que aconteceu de fato. É um choque saber que ele estava lá o tempo todo.
Nesta hora, lembramos principalmente da nossa mãe, Carmen, que cuidou de nós e nos protegeu de todas as formas que uma mãe poderia fazer. Que encarou dificuldades para nos criar, enfrentou tudo, chegou a ir à Argentina, prestou depoimentos às autoridades. Que nos ensinou a ter autonomia, responsabilidade, a cuidar das nossas vidas. É o que fazemos todo dia, honrando sua memória.
Ainda queremos e precisamos de respostas. Quem matou Tenório? Por quê? Por que matar um homem sem nenhum envolvimento político, que só vivia para a música? Durante anos ouvimos versões, histórias que agora se revelam falsas.
Agradecemos ao EAAF por essa descoberta depois de quase meio século. É preciso que seja feita uma nova investigação. Em nome da memória que não pode se perder. Esperamos que, desta vez, as autoridades possam nos dizer o que aconteceu. A dor não irá embora nunca, mas a justiça pode trazer conforto.
Elisa Andrea Tenório Cerqueira, Francisco Tenório Cerqueira Neto e Margarida Maria Tenório Cerqueira”
Do portal Vermelho