“Pedagogia da Indignação”, publicado postumamente em 2000, foi o último livro de Paulo Freire, que pretendia reunir um conjunto de cartas pedagógicas sobre as relações entre famílias, filhos, professores e estudantes numa linguagem acessível ao grande público. Freire se foi antes de finalizar a obra. Das cartas, ficamos com apenas três. A última delas, escrita em 21 de abril de 1997, também último texto escrito por ele, tratou do bárbaro assassinato do pataxó Galdino Jesus dos Santos.

Freire é frequentemente lembrado pela pedagogia da práxis, pelo revolucionário método de alfabetização que carrega seu nome e pela boniteza, amorosidade e humanismo transbordantes de seus escritos. O educador, apesar disso, também era um homem indignado, que reivindicava o direito de sentir uma “justa ira” fundada na “revolta em face da negação do direito de ‘ser mais’”.

Em sua ‘Pedagogia da Autonomia’ (1996), outra obra da maturidade, Freire afirmou que nunca se permitira cruzar os braços diante da miséria, esvaziando a sua própria responsabilidade no discurso cínico “que fala da impossibilidade de mudar porque a realidade é mesmo assim”.

O educador indignado que valorizava a justa raiva, porém, sabia diferenciá-la do ódio puro e simples – ou, nas suas próprias palavras, da “raivosidade irrefreada”. Sobre o assassinato de Galdino, Freire registrou que não era possível “refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor”. Freire não viveu até a segunda década do século XXI para ver Jair Bolsonaro e seus asseclas estimulando crianças e adolescentes à raivosidade irrefreada, que viceja nos seguidos e aterradores casos de violência armada ocorridos em escolas do país.

No início deste mês, um adolescente de 15 anos atirou contra três colegas em uma escola estadual de Sobral/CE, município conhecido como a meca da aprendizagem no Brasil. Duas pessoas foram atingidas na cabeça. A arma utilizada nos disparos estava registrada em nome de um “Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador”. Devemos ao governo Bolsonaro – e à sua sanha de armar até os dentes a população civil – a popularização da sigla “CAC”.

Numa escola municipal da cidade de Barreiras/BA, poucos dias antes da tragédia de Sobral, um adolescente de 14 anos matou a facadas uma colega cadeirante. Além do facão e de uma navalha, ele também carregava o revólver do pai, um policial militar aposentado que guardava a arma debaixo de um colchão.

As primeiras investigações mostraram que, nas redes sociais, o adolescente disseminava discursos racistas e LGBTfóbicos. Numa das postagens, escreveu: “nunca pensei que [o Nordeste] fosse tão repugnante. Lésbicas, gays e marginais aos montes, acham que são dignos de me conhecer e conhecer minha santidade. Os farei clamar pela minha misericórdia, sentirão a ira divina”.

E antes que alguém se precipite a misturar as coisas, é preciso dizer que o debate sobre o bullying escolar e suas consequências psíquicas potencialmente terríveis não se confunde com o esparrame de armas e discursos de ódio promovido pelo atual governo e seus apoiadores – é este que mata gente, ofende a vida, destrói o sonho e inviabiliza o amor.

Os números do esparrame de armas são aterradores: entre janeiro de 2019 e março de 2022, abriu-se 1.006 clubes de tiro no Brasil – quase um por dia. Entre 2018 e 2021, o número de novas armas registradas no país mais que duplicou. Já nos 16 estados em que o fascista teve mais votos em 2018, o aumento foi de 320%.

Já o esparrame de ódio, embora difícil de medir, é sentido diuturnamente nas escolas de educação básica e superior deste país. Há alguns dias a sobrinha de um amigo, de oito anos, lhe perguntou se o Lula é a favor do consumo de carne de cachorro, pois ouviu na escola (da rede municipal de São Paulo) que a “picanha” a que o Lula se refere nos discursos será obtida de cães sacrificados. É este o nível de brutalidade produzido por essa corja. Crianças de oito anos temendo que seus cachorrinhos virem churrasco a mando do PT.

Que ninguém se surpreenda com o ressurgimento, dentro em breve, de excrescências reacionárias do tipo “Escola sem Partido”, que perderam força nos últimos anos pela dificuldade de vociferar apartidarismo estando com a língua grudada nas solas dos sapatos presidenciais. A baba tóxica dos reacionários é muito mais fluida quando eles estão na oposição, com a diferença de que, agora, existem mais defesas do que antes.

Movimentos de censura e perseguição na educação básica já foram lançados à ilegalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Nas universidades, por outro lado, ainda temos um longo caminho a percorrer no sentido do fortalecimento da autonomia universitária, tarefa postergada pela geração pós-Diretas que duvidou da possibilidade do retorno da ditadura e do fascismo. Adorno e Brecht avisaram.

Enquanto a boiada mugia que Lula iria criar banheiros unissex em escolas, quase quatro mil escolas no Brasil sequer têm um banheiro que funcione. O touro imbrochável, por sua vez, anunciou como exemplo da grande política de alfabetização de seu governo um aplicativo de celular para alfabetizar crianças que seria, ele brada, muito melhor que o método Paulo Freire (de alfabetização de adultos). A crueldade com crianças e adolescentes também abunda entre esses defensores da família que, paradoxalmente, mal conseguem disfarçar seus próprios desejos criminosos. De Bolsonaro, que sentiu “um clima” ao ver meninas de 14 anos com maquiagem no rosto, a Damares, que narrou com água na boca as piores perversidades praticadas contra bebês. Essa gente torpe, juntamente com seus fanáticos seguidores, continuará atacando escolas e professores.

A conta das emendas do bolsolão, é bom dizer, já está prevista no orçamento da educação para 2023: cortes de recursos para compra de livros didáticos, construção de creches, melhoria da merenda escolar, valorização dos profissionais da educação, funcionamento das universidades e institutos federais, pesquisa e inovação etc. etc. Diante de uma vitória de Lula e do restabelecimento de determinados espaços de disputa, teremos muito a disputar.

Pela primeira vez, convoco Paulo Freire a esta coluna para lembrar que o ódio e os projetos odiosos do bolsonarismo também se combatem com aquela justa raiva que nosso maior educador reivindicava o direito de sentir. Sim, é tempo de frentes amplas, de alianças pragmáticas e de suspender rivalidades em prol do objetivo comum de derrotar o fascismo nas urnas. Mas é preciso também manter elevados os nossos níveis de indignação e de revolta contra o que esse projeto abjeto tem provocado e continuará provocando em nossas escolas e universidades.

Outro dia, em Foz do Iguaçu, alguém perguntou como era possível vencer o medo e resistir em um estado governado por inimigos da educação apoiadores de Bolsonaro. Ao que uma professora respondeu: “a gente anda em bando”. Pois bem, o nosso desafio histórico é fazer com que o nosso bando seja sempre maior e mais revoltado que o dos fascistas. A derrota eleitoral de Bolsonaro é só o começo.

* Fernando Cássio é doutor em Ciências pela USP e professor da UFABC. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Artigo publicado originalmente em Carta Capital.

 

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