No espaço escolar de formação de professores, debatem-se aspectos diferenciados nos quais se interpenetram questões relativas a perfis de alunos, ação pedagógica, relevância dos conteúdos, projetos, gestão escolar e até mesmo o esvaziamento dos cursos de licenciatura.

Por outro lado, as instituições superiores que formam esses professores têm-se preocupado com a articulação teórico-prática envolvida nesse campo do saber, proporcionando aos acadêmicos situações que propiciem ensino-pesquisa-extensão. Neste quadro, avultam a imagem e o valor atribuído à figura do professor. Investigar por que alguns tantos escolhem o magistério como campo de atuação profissional é, no mínimo, instigante e desafiador.

Entender a dimensão imaginária de como se constitui ser professor é buscar as significações atribuídas a práticas, fatos, saberes, desejos, crenças, valores, com as quais o docente constrói seu fazer pedagógico.

Em 1984, foi publicado em Paris, num encontro internacional, o livro O professor é uma pessoa. Desde então, a literatura na área de formação de professores foi inundada por obras e estudos sobre a vida dos professores, as carreiras, os percursos profissionais, as biografias docentes ou o desenvolvimento pessoal dos professores (NÓVOA, 1995).

No Brasil a partir da década de 1990, proliferam os estudos e pesquisas sobre a subjetividade e o imaginário social. Esses estudos enfocam a figura do professor como centro do processo identificador da profissão docente, desvelando os mitos, crenças e representações que cercam o fazer pedagógico na sala de aula (NÓVOA, 1995; OLIVEIRA, 1995).

A interpenetração do pessoal e do profissional constitui parte do eu. A subjetividade docente é constituída com essas marcas, “que são transversalizadas pelo desejo imanente a todo o ser humano de orientar a sua vida por construtores de um devir prazeroso ético/estético/político” (COLLA, 1999, p. 189).

De acordo com Rey (1999, p. 108), desvelar a subjetividade significa trazer à tona o “objeto de conocimiento con la misma legitimidad ontológica que cualquier otro, solo constituyente del propio sujeto del conocimiento”. Cada indivíduo é uma síntese individualizada e ativa de uma sociedade, uma reapropriação singular do universo social, histórico e subjetivo que o envolve (FERRAROTTI, 1983).

Mas o que é ser professor hoje? Vários autores dissertaram sobre a formação do docente, tendo como ponto de partida as características pessoais e o percurso de vida profissional de cada professor. Entre esses autores, Nóvoa (1995. p. 16, grifos do autor) discute a questão, colocando a existência de três “A” que sustentam o processo identificador dos professores:

“ – A de Adesão, porque ser professor implica sempre a adesão de valores, a adoção de projetos, um investimento nas potencialidades das crianças e dos jovens”.

– A de Ação, porque também aqui, na escolha das melhores maneiras de agir, se jogam decisões do foro profissional e do foro pessoal. Todos sabemos que certas técnicas e métodos “colam” melhor com a nossa maneira de ser do que outros. Todos sabemos que o sucesso ou insucesso de certas experiências “marca” a nossa postura pedagógica, fazendo-nos sentir bem ou mal com esta ou aquela maneira de trabalhar na sala de aula.

– A de Autoconsciência, porque em última análise tudo se decide no processo de reflexão que o professor leva a cabo sobre a sua própria ação. É uma dimensão decisiva na profissão docente, na medida em que a mudança e a inovação pedagógica estão intimamente dependentes deste pensamento reflexivo.

O autor coloca ainda que a identidade não é adquirida, não é uma propriedade, mas um lugar de lutas e de conflitos caracterizados por um processo dinâmico “onde cada um se sente e se diz professor”.

Para refletirmos sobre esse universo e com a preocupação de articularmos a teoria com a prática, optamos pela realização, de acordo com o método biográfico, da coleta de histórias de vida de professores.

Propusemos a seis alunos do Curso de Pedagogia de uma Instituição de Ensino Superior do Distrito Federal, que atuavam como professores no ensino fundamental na rede particular e pública de ensino, a produção de um memorial sobre ser professor, a prática docente e o cotidiano escolar. Essa coleta de dados foi realizada no 2° semestre de 2002.

Bastos (1999, p. 189) coloca a importância de escrever/ler memoriais na formação e na educação continuada de professores como forma de resgatar os elementos subjetivos e personalíssimos envolvidos na trajetória profissional.

Escrever/ler memoriais possibilita repensar a prática educativa na perspectiva dc que a vida é o lugar da educação e a história de vida o terreno sobre o qual se constrói a formação. O exame do processo de formação e de mudança se faz explicitamente sobre o modo como o docente percebe as situações concretas do seu próprio percurso educativo.

Já Dominicé (1994) enfatiza o trabalho das histórias de vida como meio de pesquisa para investigar os processos de aquisição do saber e de revalorização epistemológica da noção de experiência, permitindo uma abordagem teórica do conceito de formação, visto que o exame desse processo reconstitui as situações concretas de mudanças do fazer pedagógico.

O autor nos fala ainda que os processos memorativos são relacionados a campos de significação na vida do sujeito que recorda. A dimensão subjetiva do indivíduo não só faz parte de um processo de constituição individual como também se constrói na coletividade.

A seguir alguns trechos dos memoriais que contam as histórias de vida e as significações da prática docente:

[…] Na minha família tem três tias professoras. Sempre imaginava como era ser professora, trabalhar com tantos alunos. […] Na minha opinião ser professor é um misto de alegria, desafio e dificuldades. […] Atuo como professora da primeira série do ensino fundamental. Tento reinventar meu cotidiano, mas confesso que as dificuldades econômicas dos meus alunos muitas vezes impedem vôos mais altos. Articular a teoria com a prática no cotidiano é muito difícil. Por este motivo faço o Curso de Pedagogia. (Aluna 0l, sexo feminino, 30 anos, 12 anos de profissão, escola da rede pública de ensino)

[…] Sempre sonhei em ser professora, não imagino que eu possa ter outra profissão. […] Quando escolhi cursar Pedagogia, fui consciente. […] Gosto muito de trabalhar com crianças da terceira série do ensino fundamental, observar o crescimento e desenvolvimento cognitivo. (Aluno 02, sexo masculino, 28 anos, 05 de profissão, escola da rede pública de ensino)

Ser professora é ser idealista… diria até teimosa. Minha mãe é professora, não achei que fosse escolher esta profissão. A cada dia, minha prática se transforma, pois realizar adaptações na sala de aula para desenvolver todos os conteúdos de todas as disciplinas, é instigante. O cotidiano da sala de aula impõe muitos desafios… trabalhar com crianças da 4ª série em um bairro da periferia, onde faltam recursos é muito difícil. (Aluno 03, sexo feminino, 23 anos, 07 de profissão, escola da rede pública de ensino)

[…] Trabalho na segunda série com uma turma de 30 alunos. Faço Pedagogia e tenho o sonho de mudar este país. Será que vou conseguir… minha mãe se aposentou tentando… quando eu era pequena ouvia suas histórias sobre a sala de aula. Hoje vejo o quanto preciso estudar para entender, avaliar e trabalhar com meus alunos, Alfabetizar é difícil, ainda mais em uma escola particular. A concorrência é muito grande. (Aluno 04, sexo feminino, 29 anos, l0 de profissão, escola da rede particular de ensino)

[…] Gosto da minha profissão. Estou fazendo Pedagogia para aprender e aperfeiçoar a minha prática docente. Trabalho com crianças de 3ª série. Tento todos os dias entender a minha prática… mas o cotidiano escolar é difícil. Trabalho os conteúdos, avalio, planejo a aula, as atividades e ainda tenho que corrigir. Escolhi ser professora – vou aperfeiçoar sempre que possível, após o término do curso realizando cursos de atualização, não posso parar, quero ser uma boa profissional. (Aluno 05, sexo feminino, 28 anos, 11 anos de profissão, escola da rede pública de ensino)

[…] Comecei tarde a estudar… fiz o magistério com 21 anos. Trabalho em duas escolas – na segunda e terceira séries. Desenvolvo os conteúdos por meio de atividades adequadas a cada turma. Meu cotidiano é corrido, já que trabalho e estudo. Tenho certeza que minha formação na Pedagogia vai contribuir para o entendimento do aluno e suas necessidades. (Aluno 06, sexo feminino, 34 anos, 11 anos de profissão, escola da rede particular de ensino)

Os depoimentos, por um lado, abordam as dificuldades e os desafios enfrentados no cotidiano profissional, por outro, enfatizam a necessidade de estar em busca de constante atualização como forma de imprimir mais qualidade à tarefa de ensinar. Em nenhum momento, os depoimentos trazem à discussão a questão dos baixos salários ou a culpa do Estado no processo de desvalorização do docente que atua nas séries iniciais do ensino fundamental. A visão idealista revela aspectos da despolitização do grupo que escreveu os memoriais.

Subjetividade e formação de professores – o conhecimento e a ação

O legado da modernidade tem trazido à tona muitos questionamentos acerca do conhecimento epistemológico das ciências humanas. Conhecimentos teóricos que durante muito tempo sustentaram as explicações envolvendo a razão humana, a lógica cartesiana e o mito da racionalidade científica foram ultrapassados.

Estudos sobre a complexidade e a busca da multiplicidade de sentidos que consideram um novo entendimento do homem e da sociedade são enfatizados pela dimensão subjetiva-simbólica-imaginária do cotidiano. As abordagens que remetem a esse campo do saber vêm oferecendo aos cientistas e pensadores sociais uma alternativa para os processos que regulam a vida em sociedade (TEVES; EIZIRIK, 1994).

Castoriadis (1992, p. 205), ao considerar a questão da subjetividade, afirma que:

[…] o sujeito apresenta-se como essa estranha totalidade que não é um e é ao mesmo tempo, composição paradoxal de um corpo biológico, de um ser social (indivíduo socialmente definido), de uma “pessoa” mais ou menos consciente, enfim, de uma psique inconsciente (de uma realidade psíquica e de um aparelho psíquico), tudo extremamente heterogêneo, porém, definitivamente indissociável. Tal se apresenta a nós o fenômeno humano.

Para o autor, a subjetividade não é inerente ao sujeito, mas sim algo muito mais complexo. Ele a vê como uma possibilidade do homem, compreendido como “sujeito” apenas quando se torna capaz de questionar a si mesmo e ao mundo. Portanto, a área de Conhecimento das Ciências da Educação em nível Superior, que compreende a formação inicial e continuada de professores para a Educação Básica, Curso de Pedagogia e Licenciaturas, deve levar em conta investigações que estabeleçam as redes de sentido, que considerem as diferentes significações da dimensão profissional e pessoal do sujeito-professor.

Para Nóvoa (1995, p. 25), a formação de professores se desenrola a partir de uma determinada visão docente. Para ele,
a formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas) mas sim através de um trabalho de reflexidade crítica sobre as práticas e de (re) construção permanente de uma identidade pessoal […] investir na pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência.

A formação do professor não passa apenas por sua competência técnica, mas também por sua competência em termos de distinguir os conhecimentos necessários ao homem na sociedade atual.

São esses os requisitos básicos que permitem ao educador explorar seus limites e possibilidades, de forma que sua prática imediata seja conseqüente e incorpore uma compreensão das tendências históricas da sociedade contemporânea.
Para ensinar não é suficiente conhecer os conteúdos, é preciso saber o que seja a educação e como se configura quanto ao homem educar e quanto ao projeto de uma sociedade justa e desenvolvida.

É necessário considerar que há uma diferença entre o professor e o educador: enquanto aquele quantifica segundo a lógica de cada instituição e adere à rotina de atribuir graus e conceitos e à imposição do planejamento, este cria e descreve mundos e leva o aluno a perceber os mundos como foram descritos.

A formação para a função docente exige o desenvolvimento de competências polivalentes, que abranjam conteúdos de naturezas diversas, não só conhecimentos gerais das diversas áreas do conhecimento, como também conhecimentos específicos relativos ao fazer pedagógico. Esse caráter apresenta-se de uma forma multifacetada, complexa, exigindo do profissional uma postura aprendente, que inclui uma reflexão constante sobre sua prática, estendendo o debate a seus pares, às famílias e à comunidade, na busca do que se encontra oculto no cotidiano de seu trabalho.

Suzana Schwerz Funghetto – Mestre em Educação, Especialista em Educação Especial, professora do Curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências da Educação, UniCEUB, Brasília – DF (suzanasf@terra.com.br)

Regina Cláudía Coelho Netto – Mestre em Educação, professora do Curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências da Educação, UniCEUB, Brasília – DF (reginarccn@uol.com.br)

Referências

BASTOS, M.H.C. Idiossincrasias d uma professora. In: RAYS, O. A. (Org.). Trabalho pedagógico: realidades e perspectivas. Porto Alegre: Sulina, 1999.
CASTORIADIS, C. Encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
COLLA, A. L. A constituição da subjetividade docente. In: RAYS, O.A. (Org.). Trabalho pedagógico: realidades e perspectivas. Porto Alegre: Sulina, 1999.
DOMINICÉ, P. L’histoire de vie comme processus de formation. Paris: L’Harmattan, 1994.
FERRAROTTI, F. Histoire et histoires de vie: la méthode biographique des sciences sociales. Paris: Librarie des Méridiens, 1983.
NÓVOA, A. (Org.). Profissão professor. 2ª ed. Porto: Porto, 1995.
. (Org.). Vidas de professores. 2ª ed. Porto: Porto, 1995 (Coleção Ciências da Educação).
OLIVEIRA, V. F. Imaginário social e educacional: uma aproximação necessária. Revista
Educação, subjetividade e poder. Ijuí: UNIJUÍ, v. 2, 1995.
REY, F. L. G. Epistemología cualitativa y subjetividad. São Paulo: Educ, 1997.
TEVES, N.; EIZIRIK, M. O imaginário na configuração da realidade social. Em aberto, Brasília, v. 14. n. 61, p.7-33, jan./mar., 1994.

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