Depois de assistir “Dias Perfeitos”, de Win Wenders, em que é feita uma cuidadosa reconstrução de um cotidiano aparentemente ordinário do Sr. Hirayama, uma pessoa comum, um limpador de banheiros públicos em Toquio, fico pensando na minha vida e nos meus hábitos cotidianos.

Hirayama acorda todo dia com o barulho de uma vizinha varrendo a rua, arruma seu colchonete, faz sua higiene, cuida de suas plantas, sai de casa, olha para o céu e sorri, compra café numa máquina e vai para o seu serviço. O seu serviço é menos até que um trabalho comum, pois lavar banheiros, assim como quem recolhe o lixo, é um trabalho estigmatizado em nossa sociedade.

Jessé Sousa vê um aspecto político no filme. Aqui está a primeira reflexão crítica, dirigida à crença meritocrática dominante que diz que quem ganha mais e exerce trabalhos prestigiosos é “melhor” do que as pessoas que trabalham em coisas comuns ou estigmatizadas.

Hirayama é um atento fotógrafo amador mostrando a beleza das árvores, parece parado no tempo com suas fitas cassete para ouvir música e gosta de leitura. Quem não atenta ao momento vivido, literalmente não vive, diz Jessé, pois “todo estímulo que recebemos se dirige ao futuro, à acumulação ao que vai acontecer, o que nos tira da vida presente e faz com que nos percamos de nós mesmos”.

O cotidiano de Hirayama é repetido inúmeras vezes no filme mostrando-nos o quanto o dia de uma pessoa pode ser repleto do belo quando paramos para observá-lo.

A gente não acorda para trabalhar todos os dias, e vai para os mesmos lugares, independente do que está acontecendo em outros cantos da sua vida? E fico pensando nos meus “dias perfeitos”.

Não sou limpador de banheiros, mas sou professor. Acordo ao som da musiquinha do celular, acendo a luz, arrumo a cama, abro a janela e olho como está o dia, faço os hábitos de higiene, tomo café, pego o carro, vou para a PUC, cumprimento alunos e funcionários ao me dirigir para a sala dos professores, converso com eles, vou para a sala de aula, preparo a multimídia e dou minha aula. Faço perguntas para os alunos, trocamos ideias, discutimos.  Um cotidiano que já faço há 63 anos, de 1960 a 1968, como padre, professor no Seminário, e daí até hoje em várias faculdades e cidades, estando já quase 40 anos na PUC.

Vejo beleza no meu cotidiano e aos 87 anos ainda venho mantendo esta repetição. Não vejo somente beleza no meu cotidiano. Gosto muito de buscar a origem etimológica das palavras ensinar, educar e professor. Ensinar, in+signare, marcar com um sinal.  Educar, ex-ducere, conduzir para fora, professor, pro+fetari, falar em público. Busco falar para os alunos, marcando-os com um sinal, para sua emancipação.

Vejo beleza no meu cotidiano, mas vejo sobretudo uma ação política. É o que diz Paulo Freire, em “Pedagogia da Autonomia”: “Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor, que por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não posso ser professor a favor simplesmente do Homem ou da Humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica dos indivíduos ou das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza da minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar, se não brigo por este saber, se não luto pelas condições materiais necessárias sem as quais meu corpo, descuidado, corre o risco de se amofinar e de já não ser o testemunho que deve ser de lutador pertinaz, que cansa, mas não desiste”.

Arnaldo Lemos é professor e diretor do Sinpro Campinas e Região

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